Chegou aquela época clássica do ano em que reclamamos do calor insuportável. Ventiladores e roupas frescas dominam nossa rotina, mas, durante o mesmo período, o hemisfério norte opta por esquecer que essas coisas existem. Isso por conta do frio severo que ocasionalmente se dá no inverno.
“California Dreamin’“, maior sucesso do grupo The Mamas & The Papas, é um exemplo disso. Composta de forma saudosa, homenageando o calor californiano, a canção virou uma espécie de hino não-oficial do estado, quase um cartão-postal.
Não à toa, também ajudou a sustentar a estética musical que ficou conhecida como “California Sound”, normalmente identificada através de gravações mais voltadas para o pop e para o rock, a exemplo de nomes como Beach Boys e Brian Wilson. A lírica do folk em questão, no entanto, conversa com a solar mitologia californiana, inspirada fortemente pela cultura praieira.
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Separamos algumas curiosidades sobre este grande hit, desde a história de sua composição até apresentações polêmicas. Confira após o vídeo:
O frio de Nova Iorque
Muitas letras de sucesso nos anos 60 contam histórias psicodélicas através de personagens e localizações fictícias. Bom, não é este o caso de “California Dreamin’”.
A canção foi escrita em 1963, durante uma viagem dos recém-casados John e Michelle Phillips à cidade de Nova Iorque em meio a um inverno friorento. A inspiração principal foi a saudade que Michelle sentia da Califórnia, seu estado natal. Isso fica claro no verso “I’d be safe and warm if I was in L.A” (“Eu estaria salvo e aquecido se estivesse em Los Angeles”).
Em uma entrevista, John Phillips lembrou do processo:
Tinha nevado durante a noite. Na manhã seguinte, ela [Michelle] não sabia o que aquela coisa branca caindo do céu era, porque nunca tinha nevado no sul de L.A.. Então, fomos dar uma volta. A música é basicamente uma narrativa do que aconteceu naquele dia. Entramos em uma igreja para nos aquecermos e por aí vai.
Traumas da época de escola
A canção é tecnicamente autobiográfica e retrata a tal viagem com detalhes. Os versos sobre uma súbita parada em uma igreja foram escritos por Michelle: “Stopped into a church I passed along the way”.
Inicialmente, essa parte da música não foi muito bem recebida por John. O compositor havia estudado, quando criança, em um colégio católico e não gostou muito da experiência, criando aversão em relação a religiões no geral. Michelle disse que mudaria a tal parte, mas, no final das contas, ambos ficaram satisfeitos com a letra em sua totalidade.

A primeira gravação não foi deles
Apesar da composição de John e Michelle, não foi do The Mamas & The Papas a primeira versão a ser gravada e disponibilizada ao público. O casal deu a música para o colega Barry McGuire, que a incluiu na tracklist de seu disco This Precious Time, de 1965. Mesmo assim, chegaram a contribuir com os backing vocals da gravação.
A ideia para a gravação do grupo partiu de Lou Adler, líder da Dunhill Records na época. A “nova” versão, no entanto, foi feita em cima do mesmo instrumental e vocais de apoio. Quem assumiu a linha principal da voz foi o integrante Denny Doherty. De qualquer maneira, a gravação original de McGuire não foi completamente apagada da gravação. Em entrevistas, o cantor já disse que seu vocal original pode ser ouvido na gravação do TM&TP.
O solo de flauta alto mais famoso da música pop?
Apesar da grande semelhança entre a versão que conhecemos e a de McGuire, um detalhe impressiona. O solo de flauta da versão original foi substituído por um solo de flauta alto, instrumento não tão comum na música pop da época, com um registro mais baixo do que o da flauta convencional.
O autor, o músico Bud Shank, foi convidado para improvisar um solo durante uma sessão de estúdio com o grupo e cumpriu sua missão logo na primeira tentativa. No ano seguinte, em 66, ele também atingiu fama com uma versão instrumental de “Michelle“, dos Beatles, em que usou saxofone para cobrir a voz principal.
A fé de cada um
Internet afora, você pode encontrar duas versões da letra. Uma delas conta com o trecho “I got down on my knees and pretend to pray” (“fiquei de joelhos e fingi rezar”). Já a outra substitui o verbo “pretend” por “began” (“fiquei de joelho e comecei a rezar”). Mas, afinal, qual é a correta?
Em entrevista realizada em 2018, Michelle esclareceu que é “pretend”. Mas a confusão foi feita até pela outra integrante do grupo. Cass Elliot, a Mama Cass, ficou durante um bom tempo achando que o eu-lírico realmente dedicava um tempo à sua fé, e admitiu que era o que ela sempre cantava nos shows. A compositora explicou a confusão:
Estávamos fazendo uma passagem de som e a Cass virou para mim e disse: ‘O que você acabou de dizer?’ (…) Ela falou: ‘Essa não é a letra! A letra é I began to pray‘ (…) E eu disse: ‘Cass, eu escrevi a música. Eu acho que sei o que a letra fala’.
Briga de (ex) casal
John e Michelle se separaram em 1969, e esse foi um fator determinante na separação do grupo dois anos depois. Não à toa, o último disco do TM&TP, People Like Us, foi lançado só depois do término e gravado apenas por conta de obrigações com a gravadora.
Em 2001, pouco tempo antes de sua morte, John disse publicamente que Michelle não merecia créditos pela composição. Isso abalou profundamente a cantora, que claramente contribuiu para a letra. “Me senti machucada. Aquilo não fez sentido para mim”, conta a cantora em sua autobiografia lançada em 1986 que, por sinal, leva o nome da música no título.
Do nada, uma BANANA
Inquestionavelmente relevante, o The Ed Sullivan Show (1948 – 1971) abrigou basicamente todos os artistas que fizeram sucesso nas décadas de 50 e 60. O programa recebeu nomes como The Jackson 5, Elvis Presley, The Beach Boys e até Carmem Miranda. Por sinal, também sediou a primeira apresentação dos Beatles na TV americana (a maior audiência da história até a chegada do homem à Lua).
Em 67, Sullivan recebeu The Mamas & The Papas, que “cantaram” “California Dreamin’”. A curiosa performance, no entanto, acabou tendo todo o seu foco em Michelle Phillips, que simplesmente decidiu comer uma banda enquanto se apresentava ao lado dos colegas. Entregando um claro “lip sync”, a cantora chega a largar o microfone no chão, encerrando a música literalmente cantando em uma banana comida pela metade.
A versão mais famosa dessa história é a de que o que Michelle fez foi um ato crítico ao fato de que o grupo não poderia cantar a música ao vivo, sendo orientado apenas a cantar, com microfones desligados, sobre o playback. No entanto, pode-se perceber que o grupo, que teve seu fim em 1971 (curiosamente o mesmo ano do fim do programa de Sullivan), já estava se estremecendo.
O polêmico registro encontra-se no vídeo abaixo:
Hall da Fama do Rock & Roll
Empossados por Shania Twain, o The Mamas & The Papas entrou para o Rock & Roll Hall of Fame em 1998. Na ocasião, tocaram o seu maior hit na ausência da voz mais marcante do grupo: Mama Cass, que morreu em 1974, aos 32 anos, em decorrência de um ataque cardíaco. Em seu discurso, Michelle homenageou a ex-colega: “Cass está sentada no topo da grande Lua desta noite, olhando para tudo isso”.
Em sua introdução, o Hall of Fame destacou a potência e a importância do grupo para o som da época:
O som sul-californiano do The Mamas & The Papas capturou o espírito da Costa Oeste. Suas vozes e personalidades distintas se juntaram para formar um grupo extraordinário que foi mais do que a sua de suas partes. The Mamas & The Papas fez arranjos lindos que se tornaram emblemáticos para a época.
Sucesso gradativo
Não foi de primeira que o The Mamas & The Papas conquistou o mundo com “California Dreamin’”. Após ser reproduzida com mais frequência em rádios de Los Angeles e de Boston, a canção demorou pouco mais de um mês para entrar de fato nas paradas musicais de sucesso.
Mas a espera valeu a pena! Isso porque o grupo atingiu a quarta posição no Hot 100 da Billboard em Março de 66. As três músicas responsáveis por bloquear a consagração do grupo foi “Listen People” (Herman’s Hermits), “These Boots Are Made For Walkin’” (Nancy Sinatra) e “The Ballad Of The Green Berets” (SSgt Barry Sadler).
Acredite se quiser, mas o primeiro #1 da música veio só em 2016, graças ao DJ alemão Freischwimmer. Com seu remix trop-house, ele foi para o topo da lista Dance Club Songs. Além disso, existe uma outra comparação com a versão original: assim como Mama Cass, ele também achou que a letra dizia “began to pray”.
E por falar em outras versões…
“Choro sem cessar por você, meu bem”
Você acha que o bom brasileiro dos anos 60 deixaria uma grande canção como essas passar ilesa?
Em 1966, o grupo Renato e Seus Blue Caps, liderado pelo querido Renato Barros, se inspirou em “Caliornia Dreamin’” para lançar “Não Te Esquecerei“. Apesar da mudança de letra, o tema continua o mesmo: saudade, mas dessa vez temos uma saudade mais no sentido romântico da coisa. É uma ótima versão “abrasileirada“.
Seguindo o padrão de trocar apenas o instrumento responsável pelo solo, chegou a vez de sintetizadores assumirem o protagonismo.
Outras versões
Incontáveis covers desse grande sucesso foram gravadas ao longo dos anos. Entre as mais notáveis, temos versões mais voltadas ao rock, como a gravada em 1986 pelos Beach Boys e a gravada em 1987 pela banda M.I.A.
A icônica letra também encontrou espaço em filmes nas vozes de diferentes artistas. A cantora pop Sia, por exemplo, gravou uma versão criativa e arriscada para o (nem tão bom) filme Terremoto: A Falha de San Andreas, de 2015.
O porto-riquenho José Feliciano gravou uma versão em 1968 com um arranjo mais acústico. A releitura veio a chamar maior atenção em 2019, quando foi incluída como destaque da trilha de “Era Uma Vez em Hollywood“, filme mais recente de Quentin Tarantino.
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